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O Lado B da Bossa Roberto Menescal e Cris Delanno

Publicada em: 14/10/2025 14:14 -

Roberto Menescal e Cris Delanno se conhecem há quase quatro décadas;  "trinta e muitos anos de amizade", como preferem definir. Aos 17 anos, a cantora carioca nascida no Texas, EUA, e criada na Tijuca, já estava envolvida com grandes nomes da bossa nova, ladeando o pianista Luís Carlos Vinhas (1940-2001). No ano seguinte, começou a trabalhar com Menescal, em vocais de apoio. "Minha primeira gravação como voz solo foi num disco dele (na faixa título do álbum "Ditos & Feitos", de 1992, parceria de Menescal e Nelson Motta)", lembra Cris.

Ao longo desse tempo todo, ela e Menescal estiveram juntos em inúmeros projetos em estúdio e, com mais regularidade ainda, em alguns dos melhores palcos do Brasil e do mundo -- clubes de jazz, festivais tradicionais e espaços cultuados que ela frequentou também cantando com o BossaCucaNova. Em 2005, os dois selaram a parceria como duo com o álbum "Eu e Cris" (selo Albatroz), em refinado esquema voz e violão, com repertório eclético (onde cabiam "Roxanne", de Sting, e "Corazón Partío", de Alejandro Sanz, entre standards e bossas).

Artista com 14 álbuns lançados (em solo ou duo), com fãs do calibre de Andy Summers (The Police), Guinga e Marcos Valle, Cris sempre impressionou pela técnica e pela variedade de recursos. Também reconhecida pela excelência como professora de canto, ela faz de "O Lado B da Bossa" uma aula de elegância, leveza e expressividade. "Cris é danada. Está no auge", elogia Menescal.

Prestes a completar 88 anos, em 25 de outubro, o pioneiro da bossa nova poderia estar apenas colhendo os louros da carreira de sete décadas como autor e produtor internacionalmente consagrado, dono de um patrimônio de mais de 400 canções. Mas ele segue hiperprodutivo, envolvido em muitos projetos diferentes. Em janeiro deste ano, Menesca (como os colegas mais próximos o chamam) fez onze shows no Rio, no aquecimento para uma turnê histórica pelo Japão e outras datas no Brasil. Em 25 de julho, lançou o single inédito "Brisa Que Mora No Mar", parceria com o jovem Theo Bial.

E foi neste ano superatribulado que ele reservou um tempo especial para carinhosamente terminar o novo álbum "O Lado B da Bossa", iniciado em novembro do ano passado, a convite de Cris. A ideia do disco era registrar canções que nem sempre figuram nas listas mais populares do gênero. Todas com arranjos inéditos, mas dentro do rigor e da elegância do band-leader que, em cinco discos, entre 1963 e 1969, expandiu a estética da bossa, nas transfusões de jazz no samba, ao mesmo tempo em que promovia um enxugamento em direção ao intimismo. Intimismo que ele viria a explorar de forma lapidar a partir de 1985, com "Um Cantinho, Um Violão", em duo com Nara Leão (e depois com Wanda Sá e Leila Pinheiro).

O conceito de lado B partiu de Cris, mas o repertório foi sendo escolhido em comum acordo, a partir de encontros marcados pelo afeto e a amizade, ainda que objetivamente produtivos. Os dois dividem a produção musical do álbum. "São músicas que a gente adora. Com a cara da gente. Saudade do que a gente fez, mas também saudade do futuro", define Menescal. "Eu o convidei porque queria mais perto dele", aponta Cris.

É um disco de reencontros: com a amiga, com um repertório de evidente lastro afetivo, e também com um velho companheiro, um violão Giannini, que há muito andava sendo preterido por guitarras nos projetos do músico. O motivo é simples: o instrumento "queridinho", sofrendo o desgaste natural do tempo, precisava de reparos, e Menescal havia perdido o contato com seu luthier, Luiz Felipe de Moraes. Assim que recebeu um telefonema dele, informando que agora eram vizinhos de condomínio, rolou um "aaah, tô indo aí agora".

Como explica Luiz, que tem um canal no YouTube chamado Luthier do Futuro/Professor Luiz, "os violões antigos tendem a desangular o braço, e ficam com as cordas muito altas -- podem ficar muito desconfortáveis para tocar, ou mesmo 'intocáveis'". Luiz fez um reset no braço, que voltou à sua posição original, e deixou as cordas mais baixas, atendendo a uma peculiaridade do pioneiro da bossa, que toca muito suave. "De todos os meus clientes, é quem toca com as cordas mais baixas."

Com seu xodó devidamente amaciado, bateu em Menescal a vontade de tocar apenas o violão, mais apropriado para a proposta do disco. E o método de concepção dos arranjos foi diferente. Ele conta que foram doze encontros, na casa de Menescal, no Recreio dos Bandeirantes, e na sede da Abramus (associação de direitos autorais), na Barra da Tijuca, em "um cantinho onde ninguém se mete nos nossos trabalhos". Foram buscadas novas introduções, intermezzos, sutis inovações, num diálogo mais rico do que a maioria dos bate-bolas entre maestro e canário -- até porque Cris, com sólida formação musical, toca piano e flauta, tem muito mais a contribuir.

Com os arranjos prontos, todos escritos à mão (e depois passados para o computador pelo pianista Adriano Souza), a cada duas ou três músicas alinhavadas ("o que não estava escrito, estava definido"), eles iam para o estúdio, gravando somente violão e voz. A intenção era dar liga, criar uma espécie de refogado musical intimista, que só depois ganharia o reforço elegantíssimo do trio formado por Adriano Souza (piano e órgão), Adriano Giffoni (baixo) e João Cortez (bateria).

Cris se preocupou em valorizar a clareza nas letras, mas também foram soltadas amarras do uso da voz como instrumento. E foi assim, em clima de cumplicidade musical e lúdica, que "O Lado B da Bossa" foi se enchendo de scats, os vocalises que fazem parte da linguagem do jazz e que a bossa abraçou de forma natural, descontraída, movida, antes de tudo pelo prazer. Prazer de cantar, prazer de estar junto, prazer de cantar junto, trançando vozes em "parundás" e "paraba-paraba-papás". No caminho inverso do maneirismo, do artificioso, exibicionista, afetado, que se perde em labirintos melódicos; na tradição iniciada por Dolores Duran (1930-1959) em "Fim de Caso", misturando sons abrasileirados, que desemboca em clássicos como "Água de Beber", de Tom Jobim e Vinicius.

Cris Delanno saboreia as sílabas sem corromper a semântica e traz para a brincadeira um Menescal, como ela mesmo diz, "saidinho". Ao longo do disco, ele se faz ouvir com a voz expressiva, jovial, em diálogo saboroso com a da intérprete. Até tentou resistir à ideia, mas... "Ela me estimulou e disse: 'Preciso de uns contracantos, de um apoio aqui'. Na verdade, ela exigia: 'Estou mandando'. E eu fui. Com a idade, a gente sempre fica mais sem-vergonha", comenta.

A gravação escolhida para single repete uma dobradinha jobiniana que Menescal já costurava desde o tempo em que tocava com Sylvia Telles. "Esse Seu Olhar/ Promessas" (canções "gêmeas" de Tom; a segunda, em parceria com Newton Mendonça) é provavelmente a primeira faixa que Roberto Menescal lança em duo como voz solo. Será mesmo? "Tenho certeza que não houve outra dessas antes", responde ele. A professora Cris é toda elogios: "É charmoso o canto dele. Tem muita experiência ali, ele consegue expressar cada palavra. Tem uma maldade, não desperdiça nada".

A criatividade de Menescal surpreendeu Cris também na primeira faixa, "Deixa" (Baden Powell e Vinicius de Moraes), animada por órgão sambalançante e com a melodia levemente mexida, "para explodir mais". Uma escolha certeira para abrir o álbum em clima "pra cima", feita por quem dirigiu gravadoras por décadas.

O filtro do repertório passou pelo critério dos compositores. "O Negócio é Amar", recriada com manha na voz e na batida do violão, junta dois nomes que não poderiam ficar fora da lista afetiva de Menescal e Cris: Carlos Lyra (1933-2023) e Dolores Duran (1930-1959). Um grande amigo e "a primeira grande letrista mulher da música brasileira", com quem Menesca teve a chance de conviver. No começo dos anos 1980, Lyra recebeu a herança e a missão de musicar o texto, que ela havia deixado em um caderninho junto com seu nome e telefone.

 

"Chora Tua Tristeza", de Oscar Castro-Neves (1940-2013), é o que Menescal define como "um clássicão da casa da Nara (Leão)". "Todo mundo cantava. Foi das primeiras músicas que a gente (daquela turma) fez", lembra. Oscar tinha 16 anos quando a compôs (com Luvercy Fiorini), e Alaíde Costa foi a primeira a gravar. Cris chegou a cantar com Oscar em 2005, no Rio de Janeiro. Recriado com toda a delicadeza no violão de Menescal, o tema ganha clima de festa nos deliciosos scats que o introduzem e embalam. "Algumas cantoras sabem fazer scat; outras, não", elogia.

Num rearranjo primoroso, "Mentiras" evoca o genial João Donato (1934-2023) ao mesmo tempo em que sabiamente se afasta de sua gravação original com Nana Caymmi. Cris, que trabalhou com o pianista acriano, lembra que ele não gostava de nada triste, e destaca o "violão andando juntinho" com a música, como um abraço que sustenta e conforta. No final, ela e Menescal pronunciam simultaneamente a última palavra -- "digaaa" -- em clima de fossa zero.

"Ah, Se Eu Pudesse" é a única composição de Menescal (parceria com Ronaldo Bôscoli, 1928-1994) do álbum -- e não é exatamente lado B. Foi incluída por exigência de Cris, que reservou para ela um interpretação de luxo, valorizando a poesia de Bôscoli. Joia com reconhecimento internacional, mas fora das playlists óbvias, "Seu Encanto", valsa do amigo Marcos Valle (com o irmão Paulo Sérgio Valle e o primo Marcos Pingarilho) vem a seguir, com adoráveis desenhos melódicos, na medida para o final jobiniano dos vocais. Um enlevo para quem ouve e para quem cantou/tocou. Comentários de Cris ao fechar a costura: "Caraca, Menesca, é isso mesmo? São saltos próximos, rapidinhos. Vamos fazer!"

A vida de Menescal mudou depois que, aos 17 anos, subornou um garçom para poder entrar em um bar e ouvir um músico que tinha sido muito elogiado por um amigo: era Johnny Alf. "Saí daquele bar louco." A canção escolhida para homenagear o ídolo que revolucionou sua visão musical foi a obra-prima "O Que É Amar", relida com uma introdução delicada e as carícias do piano de Adriano Souza. Nessas condições pra lá de favoráveis, Cris não desperdiça a oportunidade para dar uma aula de recursos interpretativos.

Durval Ferreira (1935-2007), outro contemporâneo de Menescal, é lembrado com o assumido sambinha "E Nada Mais". "Ele era meu ídolo. Começou bem mais cedo que eu. Fui vê-lo e fiquei de olho arregalado, depois chamei pra ir à casa de Nara." Cris, que também chegou a dividir palco com Durval (tijucano como ela), investe na brejeirice e encaixa um inesperado e belo solo de assovio. "Ela fez uma vez num show e ficou tão bom... Parece uma flauta. Depois ela me perguntou: 'Pode?'. Eu disse: 'Deve'."

A jovem canção "E era Copacabana", escrita por Joyce e Carlos Lyra e lançada em 2019 ganha uma releitura intimista, evocando com mais exatidão as noites inaugurais da bossa no bairro. A letra nostálgica fala direto com as memórias de Menescal -- "é a Copacabana que eu vivi" --, e também com as de Cris, que mora no bairro atualmente. "Eu trabalhei com Miele, com Lyra, fui 'Pobre Menina Rica'... A bossa nova me abraçou, como um primeiro namorado", conta ela.

Composição mais recente do álbum, "O Bondinho" tem um significado mais do que especial entre tantas joias do repertório. É uma parceria de 2020, em que Menescal completou a parceria de Cris Delanno com seu companheiro Alex Moreira, produtor, multi-instrumentista e fundador do BossaCucaNova, que morreu precemente em outubro de 2023. "O desejo de voltar a cantar em estúdio após o falecimento do Alex, com quem fui casada por 22 anos, pai do meu enteado Lucas Mamede, surgiu da crença de que a música cura tudo. Tudo mesmo. Dedico este álbum ao Alex, que me deu tanto", conta Cris.

Um raro olhar contemporâneo para uma das atrações mais populares do Rio (que em 1965 inspirou "Bondinho do Pão de Açúcar", de Armando Cavalcanti e Victor Freire, gravada por Johnny Alf no LP "Diagonal"), a gravação exala a leveza de um passeio feliz em qualquer uma das últimas seis décadas.

E o mesmo pode ser dito das outras dez faixas de "O Lado B da Bossa", resultado da efervescência criativa do reencontro do jovem Menescal com sua experiente parceira Cris. Como ele detalha: "Tudo foi saindo naturalmente nos encontros; não levei nenhuma música para terminar em casa. Eu sinto prazer em tudo. No violão, nos scats e em cantar cada músicas dessas". "Foi maravilhoso poder estar de novo mais perto dele", completa Cris Delanno.

 

 

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