RESENHA DO.JORNALISTA LEONARDO LICHOTE

Decco Torres convoca para o baile
Em 'Neo', seu terceiro disco, cantor celebra a tradição black carioca com o auxílio de William Magalhães, produtor e compositor de várias faixas  

Leonardo Lichote

A convocação carioquíssima não deixa dúvidas: "O povo todo ferve do funk ao black soul/ 
O bar está aberto tudo liberado/ Demorô". Os versos que Decco Torres canta em "Demorô" trazem o sumo de "Neo", terceiro álbum da carreira do artista. Em nove faixas, o cantor promove um baile que dança pelas pistas dos clubes suburbanos do movimento Black Rio, do funk carioca e do charm. Mas com passos e sons contemporâneos, sem papo de baile da saudade. O convite é para a vida quente deste 2023, numa cidade que se estende de Marechal Hermes a Ipanema, passando por Madureira e Lapa. 

A musicalidade de Decco tem origem familiar. Seu avô foi trombonista e tocou com nomes como Alaíde Costa. O primo de sua mãe — que também foi cantora — era o compositor Edson Conceição, um dos autores de "Não deixe o samba morrer". Seu pai, publicitário que trabalhava no meio do samba, o apresentou a esse mundo:

— Clara Nunes, João Nogueira, Roberto Ribeiro, Elza Soares... Todos eles frequentavam minha casa quando eu era criança. Era muito samba, muita cerveja, muita feijoada — conta Decco.

Caçula de quatro irmãos, nascido dez anos depois do mais novo deles, Decco cresceu ouvindo de Dalva de Oliveira à Banda Black Rio. Ainda na adolescência, começou a estudar canto lírico. Depois, ampliou seus conhecimentos indo para o canto de câmara e, posteriormente, o belting — técnica que visa à empostação e à clareza da voz, muito usada em musicais e no R&B contemporâneo.

Em 1998, lançou seu primeiro disco, que teve a participação de Jorge Vercillo, autor de três inéditas que estavam ali. Foi o início da carreira que, com a bagagem do samba e do canto lírico, sempre trilhou os caminhos da black music de sotaque carioca. "Neo", seu novo disco, carrega toda essa trajetória até aqui, com as lições da experiência.

— Tempo é tudo — resume Decco. — Este disco traz uma maturidade vocal, um refinamento maior de letras e harmonias.

Quem divide com Decco a responsabilidade pelo refinamento é William Magalhães, produtor do disco. O líder da Banda Black Rio (posto que herdou do pai, Oberdan Magalhães) se aproximou de Decco durante a pandemia. Depois de assistir um vídeo no qual o cantor interpretava "Carrossel", da Black Rio, William escreveu pra ele. Do contato nasceu a proposta de estarem juntos em "Neo".

— Estar com o William foi um sonho, eu que sempre ouvi e amei a Banda Black Rio — diz Decco, que desenhou o disco com o produtor. — Primeiro eu pensei no que queria dizer. Vindo de uma pandemia, minha ideia era fazer um álbum forte com muita felicidade, muito axé, cores quentes, a cara do Rio, com algo afroturista. Musicalmente, queria uma black music brasileira, mas que trouxesse elementos do pop contemporâneo, com muitas camadas. 

William arregimentou o repertório, convocando compositores — além de ter mixado o álbum, que tem masterização de Tuto Ferraz. O próprio produtor assina várias parcerias no disco, como a faixa que abre o disco, "Prazer em te conhecer" (Augusto Bapt/ Marcelo Mirra/ William Magalhães). Com uma base que flerta com o trap, a canção traz versos que apontam a desigualdade no mundo e convocam à ação, mas com suingue. William participa com um rap.

Com ecos das atmosferas de Seal, mas com calor brasileiro, "Vamo agora" (Daniel Novato/ William Magalhães) é outra convocação: "Vê se acorda/ Vamo agora". A ideia é a superação das dificuldades, num arranjo dançante e imponente que reforça os versos.

"Demorô" (Daniel Novato e William Magalhães) já diz de cara a que veio nos primeiros segundos, em sua explosão disco que pode remeter ao Lincoln Olivetti da década de 1980 ou ao Daft Punk de "Random access memories". Primeiro single do disco, é um convite pro baile que é a música de Decco. O rapper Felipe Limande — morto em 2021, durante o processo de gravação do disco — faz uma participação especial. 

O clima muda em "Virei a página" (Augusto Bapt/ Mariana Bergel/ William Magalhães), que já começa mais grave e dramática. Canção de amor soul, é um belo exemplar da "hora da lenta" na pista.

— É uma música belíssima, que me permitiu mostrar toda minha capacidade vocal, a respiração, a colocação da voz — avalia o cantor. — E ela tem algo da força e da forma da canção romântica italiana.

A solar "Mar de amor" (Daniel Novato e William Magalhães) sai do clube e vai pra rua, pro espaço aberto da praia, do verão carioca. A letra fala de sair pela cidade e encontrar o amor, fugaz e intenso. Um amor sem fronteiras, celebração à liberdade que ultrapassa gênero e orientação sexual: "Eu serei o que você quiser/ Anjo, Deus, mulher/ Nosso amor ninguém pode julgar".

A filiação à tradição black do Rio fica mais evidente em "Chapando no groove" (Tuto Ferraz/ Fernanda Abreu). Letra e música cruzam a cultura hip hop e a cultura surf. Tuto toca bateria na faixa. Ela tem também a presença de Limande num dueto com Decco — e o detalhe luxuoso da participação de Fernanda Abreu nos backing vocals.  

"Paraíso do sul" (Felipe Limande/ Daniel Novato/ William Magalhães) se desloca para o litoral, em sua louvação ao mar, às ondas, aos luaus, à Iemanjá, à sensualidade e ao romantismo temperados com maresia. Novamente, Limande comparece com um rap.

Se o Rio é o solo de "Neo", "Povo preto" (Gabriel Moura/ Mu Chebabi) não deixa dúvidas sobre que Rio é esse. Uma cidade negra, que vem tomando tudo como no fade in que abre a música e como nos versos iniciais: "Vem do morro/ Pra avenida desfilar". Uma afirmação viva, alegre e dançante da ancestralidade, que olha pra tradição e pro (afro)futuro. 

Por fim, "Uma canção" (Vicente Pinheiro) celebra a própria canção, esse encontro de melodia e letra. "Uma canção alegra o coração/ Faz bonita a nossa vida/ Na garganta de um cantor/ Ou no grito da torcida", dizem os versos. Com ares de Hyldon, ela nos leva lentamente para os instantes finais do baile, para que fique na memória e no assovio no caminho de volta pra casa, pra vida — a cada dia nova, neo.